Um vislumbre do fim - Clarice Lispector
"Uma vez eu irei.
Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez. O espírito, eu o terei entregue
à família e aos amigos com recomendações. Não será difícil cuidar dele, exige
pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não será difícil levá-lo ao
cinema, quando se vai. Minha alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará:
serão férias em outra paisagem, olhando através de qualquer janela dita da
alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão. De tigre, eu preferiria. Meu
corpo, esse serei obrigada a levar. Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como
única valise, segue-me como um cão. E irei à frente, sozinha, finalmente cega
para os erros do mundo, até que talvez encontre no ar algum bólide que me
rebente. Não é a violência que eu procuro, mas uma força ainda não classificada
mas que nem por isso deixará de existir no mínimo silêncio que se locomove.
Nesse instante há muito que o sangue já terá desaparecido. Não sei como
explicar que, sem alma, sem espírito, e um corpo morto — serei ainda eu,
horrivelmente esperta. Mas dois e dois são quatro e isso é o contrário de uma
solução, é beco sem saída, puro problema enrodilhado em si. Para voltar de
‘dois e dois são quatro’ é preciso voltar, fingir saudade, encontrar o espírito
entregue aos amigos, e dizer: como você engordou! Satisfeita até o gargalo
pelos seres que mais amo. Estou morrendo meu espírito, sinto isso, sinto...”
- Textos extraídos do
livro "Aprendendo a viver", de Clarice Lispector. Rio de Janeiro:
Editora Rocco, 2004.
"Eu escrevo sem
esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada...
Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está
querendo desabrochar de um modo ou de outro...".